Será possível conhecer todo o mundo numa só vida?

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Viajar é trocar de espelho...


"Nas viagens, a paisagem que mais nos espanta é a nossa... Descobri que viajar é trocar de espelho. Em casa, o espelho que nos reflete não mostra nossa mudança. Como todos os objetos da nossa rotina, como nossa rotina mesmo, o espelho da casa é um espelho domesticado. Sabemos o que vamos enxergar. Às vezes até achamos que controlamos este espelho como dominamos as mesas e as cadeiras, a posição do sofá, o canal do controle remoto, o dia de lavar os lençóis da cama. Mesmo quando notamos um quilo a mais ou um par de olhos mais fundos, aquele espelho é nosso e por ser nosso nos ameaça menos. Damos uma passadinha diante dele, às vezes involuntária, e ele nos conforta ao garantir que, sim, estamos lá. Sou eu que olho para mim. E aquela superfície lisa me garante que existo.

Quando deixamos nosso mundo e partimos em direção a outros destinos, a primeira paisagem que nos espanta é nossa própria geografia. Ao bater a porta de casa em direção ao novo, a primeira imagem familiar que abandonamos é a de nós mesmos. Nos deslocamos primeiro em nós. E o primeiro estrangeiro que nos espanta é o que nos encara do espelho da estação rodoviária ou do aeroporto, do banheiro do posto de gasolina. Quem é esta pessoa que me olha? Com frequência, somos tentados a fazer a pergunta da poeta Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Toda viagem contém nossa esperança de sermos mais livres, mais felizes, mais aventureiros, mais relaxados, melhores. Em geral, deixamos um cotidiano que nos confina a uma vida que para muitos é menor e mais apertada do que nos sonhos. Ao botar o pé na estrada, temos a expectativa de embarcar numa outra forma de ser e de viver, em um outro eu que nos parece mais verdadeiro que aquele que acorda todo dia de manhã para seguir um roteiro previsível. Como se longe de casa tivéssemos uma espécie de autorização para finalmente sermos um tal de eu mesmo.

Então, a primeira surpresa. Aquele rosto que nos estranha no espelho do caminho é nosso. Nos perturba mais porque sabemos que é nosso, ainda que diferente pelo ângulo, pelo tamanho e pela luz desconhecidas do objeto que nos reflete com outras verdades. E já ali, neste primeiro confronto, vemos algo que não sabíamos sobre nossa face, algo que o espelho domesticado não havia nos mostrado. Começamos a compreender ali o pior e o melhor das viagens: o risco. Talvez o que as pessoas que detestam sair de casa ou alterar a rotina mais temam é justamente o que podem ver de si mesmas num espelho que não é o seu.

É só ao sair que descobrimos que não podemos sair. Podemos embarcar apenas em nosso próprio corpo. Às vezes aquelas malas todas, aqueles tantos sapatos e roupas, são apenas uma tentativa inconsciente e desesperada de evitar a descoberta de que somos nossa própria bagagem e viajamos apenas com tudo o que somos. Nem mais nem menos, nosso excesso de peso é nossa nudez. É preciso abrir a porta da rua para compreender que ela só abre para dentro e só leva para dentro.

É o que diz o poema de Fernando Pessoa, estampado no último andar do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (...) A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

Viajar é uma escolha profunda, que não depende da distância nem do destino. Nela, estamos sempre sozinhos, ainda que no meio de hordas de turistas. As paisagens externas iluminam nossa paisagem interior, para o bem e para o mal. Não visitamos Roma, Nova York ou Paris, as pirâmides do Egito, o deserto do Saara, as savanas africanas, o Rio de Janeiro, a Amazônia ou o outro lado da rua. O que fazemos é revisitar a nós mesmos no contato com diferentes culturas e percepções de mundo. A mudança de paisagem ilumina os cantos escuros dos precipícios e as profundezas dos lagos que nos habitam. Sempre esperamos que exista em nós um belvedere, é esta a nossa expectativa ao viajar. E nem sempre é um belvedere o que encontramos. Por isso toda viagem é subjetiva e, possivelmente, quando detestamos um lugar ou um povo é porque não gostamos do que vimos em nós.

Sempre que viajo cruzo com pessoas, cada vez mais pessoas, que se interessam apenas pelo que podem comprar nas lojas de cada destino. Que em geral são sempre as mesmas em toda parte. Transformam a experiência de viajar numa experiência de consumo. O planeta passa a ser um grande shopping com diferentes arquiteturas. E lá gastam tudo o que podem para manter a ilusão de que viajam em perfeita segurança porque este mundo – o do consumo – conhecem bem. Acreditam secretamente que assim não se arriscam. O que não sabem, mas em algum momento vão acabar descobrindo diante do espelho do banheiro, é que a única viagem impossível é a fuga de si mesmo.

Existem ainda os que fotografam ou filmam tudo, o tempo todo, na tentativa de controlar sua imagem no espelho. Veem o mundo protegidos pela lente da câmera. Não experimentam, não se expõem, não vivenciam – apenas registram. Não o registro da vida vivida, mas o registro de que estiveram lá sem estar. Viajam para colecionar imagens, não para viver experiências e serem transformados por elas. Para estes, a imagem vale mais que a vida, quase a substitui. A vida é risco – a fotografia pode ser manipulada e melhorada com photoshop. Vão descobrir onde estiveram ao se assistirem sorridentes em diferentes cenários onde posaram como personagens de si mesmos.

Assim como há aqueles que esperam que uma viagem vá mudar radicalmente o curso de sua existência. É possível que mude. Mas talvez não do jeito que esperam se o que esperam é se transformar num outro.

Toda viagem é sem volta e leva sempre ao mesmo lugar: a nós mesmos. Ao final de cada uma, o melhor que podemos esperar é termos nos tornado mais o que somos. Ter alcançado porções mais longínquas de nossa própria geografia, mesmo que esta seja uma floresta densa e sombria. Ter sido ampliado pela experiência de se arriscar a olhar para dentro, escalando nossas próprias montanhas, mais altas que o Everest, e atravessando nossos rios internos a nado, ainda que eles estejam infestados de piranhas e jacarés famintos.

Na paisagem interna de todos nós há partes selvagens que nos provocam medo. Há monumentos dos que vieram antes que podem nos pesar ou atrapalhar, ainda que nos deslumbrem com sua grandeza. Há ruínas que lamentamos, há abismos que nos parecem intransponíveis e há também largas porções de sol e de praias de águas transparentes se procurarmos com afinco. Somos variados como o mundo que nos encanta e assusta ao mesmo tempo. Só precisamos olhar com coragem para o espelho que nos reflete e descobrir aonde ele vai nos levar. Não há setas indicando o caminho. Como dizem aqueles que moram na beira das estradas com precisão mal compreendida, aos viajantes que perguntam por direção: siga em frente, toda vida. "

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI181755-15230,00-ESPELHO+ESPELHO+NAO+MEU.html

5 comentários:

  1. Olá Luciana, obrigado pela visita. Retribuindo a sua passada lá no blog, dei uma lida naquele post onde vc foi expulsa do SPA, rs. O povo aqui nao tem praia e muito menos ainda aquela cultura de andar sem camisa ou com pouca roupa que nós temos no Brasil. Além disso sao super paranóicos com lance de exposição, daí o motivo de nao deixarem vc tirar foto. Quanto ao biquini é uma viadagem só. Bem-vinda as leis "britanicas" isso é só o começo. Beijos e boa estadia!

    ResponderExcluir
  2. Olá Antônio!!

    Obrigada pela visita ao meu blog!!

    Já percebi que os Irlandeses não gostam de exposição, por isso agora evito ao máximo. As terças feiras eu faço spinning num SPA na cidade que estou morando agora, ainda nem entrei na piscina aquecida pq não tenho maiô... prefiro não arriscar, rsrs.

    Tudo de bom para vc!!

    Bjkssss

    ResponderExcluir
  3. vim cá porque convidaste a Gisley e eu li o comentário e por isso estou aqui a conhecer um abrasileira exportada para a Irlanda
    kis :=)

    ResponderExcluir
  4. Oii Lu, passando para conhecer seu blog. Demorou mas eu voltei pra net hahaha. Amei seu blog e bufei de raiva do spa de tullamore. Caramba eu ja vi gente usar pior do que sunkini aki em Kilkenny em um spa e cabelo solto. Pra mim isso foi eh inveja porque vc eh bonita e essas irlandesas feias tem dor de cotovelo mesmo!! Eu vou seguir seu blog e linkar. Se vc puder linkar o meu tb ficarei feliz=).Espero que vc esteja curtindo bastante o clima polar, e continue postando suas peripecias tb! Pq pra ser feliz aki precisa ter mta piada!! Bjussss, Bom findi e nao some!1

    ResponderExcluir
  5. Olá Cath!!

    Adorei saber que visitou o meu blog, eu tb adorei o seu, as suas postagens são bem engraçadas, rsrs.

    Sei que escrever em blog é bem complicado, é necessário ter tempo para investir, pois os leitores querem novidades e eu fico com a cabeça a mil pensando, ai meu Deus... o que eu vou postar hj??? Vc tb deve ficar assim né!! rsrs
    Mas o retorno e o carinho dos leitores compensam bastante, eu fico toda boba quando vejo um comentário. O meu blog ainda está novinho... coitado... tem apenas 3 meses e 3000 acessos, mas um dia eu chego lá!!
    Quero guardar este blog para os netos verem a aventura da avó deles, será que eles vão gostar???
    Mas abafa... que nem filhos eu tenho ainda, rsrs.

    Enfim... vc tb ficou brava com o lance do SPA né!! Imagina eu??? Foi uma tremenda humilhação... minha amiga saiu chorando de lá... mas já passou. Este é o meu terceiro post mais lido, rsrs.

    Quanto a neve, eu tb tomei um belo tombo em plena Gardiner Street, rsrs.

    Foi um grande prazer te conhecer!!
    Apareça mais vezes!!

    Boa sorte!!

    Att,

    Luciana Sousa

    ResponderExcluir

text-align: justify;

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...